Fortalecendo

30 de março de 2012

Redenção


      Uma chuva torrencial caía e ela estava sozinha naquela cidade estranha e imensa. Não tinha ninguém. Estava só, como sempre fora. Era apenas uma menina ruiva e perdida. Perdida na cidade, perdida dentro de si mesma. Sem rumo aparente. Não conhecia família, não conseguia imaginar um amigo que um dia a ouvira. Até seu cão a abandonara. Dormia ao relento e às vezes não comia nada. Em seu rosto um ar de melancolia, insatisfação e dor pareciam querer transbordar de dentro dela mesma. Porém, aprendera desde cedo a conter-se, a esconder sua tristeza e a calar sempre.

          Seu corpo era extremamente magro e branco, muito branco... Sua fragilidade era tão intensa que aos poucos podíamos imaginar o seu desaparecimento. Era como se de repente pudesse ir se desmaterializando, se despedaçando, sumindo devagar... Bem devagar.... Até se tornar um espectro... Talvez fosse exatamente isso que ela era. Um espectro.

          No entanto, tinha olhos azuis. Lindos olhos azuis! Tão tristes e sem esperança, marejados de lágrimas naquele instante. Caminhava a esmo sem saber para onde. Não sabia onde estava e desconhecia tudo ao seu redor. Como fora chegar até ali? Não sabia. Seria uma cidade habitada? E ela? Existia mesmo? Tudo era real demais para ser ilusão... De novo não... Era real, ela sentia!

          O que pôde observar é que ali morava algo que sempre temera, mas que agora não havia jeito de voltar. Não poderia retroceder... O medo a dominava, mas não era o medo dos homens ou dos perigos ocultos. Isso evitava ou encarara sem grandes dificuldades. Seu maior medo era o de si mesma. Um simples olhar no espelho a apavorava porque não conseguia enxergar-se. Onde estava mesmo? Melhor seria então, não olhar-se nem em espelhos ou em qualquer outro lugar que refletisse o pouco que ela poderia ser.

          Caminhou vagarosamente até um beco escuro. A escuridão sempre a intrigara, pois exercia sobre ela um fascínio e temor inexplicável. Olhou ao redor e deitou-se. O chão frio e fétido já fazia parte do seu cotidiano. Ali, tentou dormir, mas seus olhos concentravam-se nas estrelas, que pareciam brilhar muito mais naquele momento. Fechava os olhos mas o sono não vinha. Em sua mente, os planos para uma nova existência começavam a tomar conta de sua imaginação. Teria o direito de sonhar? Poderia sequer imaginar uma vida ali? Seus pequenos sonhos poderiam ser concretizados? Ela também merecia. Merecia? Não sabia... Adormeceu, enfim...

         No outro dia, o sol apareceu cedo demais, iluminava tudo ao seu redor e então, a menina percebeu que era um novo dia que começara. Para ela, as mudanças iniciariam imediatamente. As mudanças sempre eram rápidas e fulminantes!

          Olhou para si, arrumou a roupa suja e amassada e foi procurar algo para comer nas lixeiras, acostumara-se ao lixo. Já não se tornara ela mesma um lixo humano? Aos poucos, pessoas caminhavam avidamente pelas ruas. Olhava-as em busca de um milagre. Ela acreditava ainda em milagres! Porém, nem sequer notavam sua presença, sua insignificância. O carinho que tantas vezes buscou novamente lhe era negado. Não teria ali também um lugar para ficar, muito menos um lar. Como pôde acreditar que algo poderia mudar? Só desejava um espaço só seu... onde não incomodasse ninguém, pois vivia só de pensamentos e ilusões. A ilusão sempre a salvara....

          Continuou a procurar algo que pudesse comer e não encontrou nada. O nada sempre fora a maior explicação de si mesma. Parecia que o tempo havia parado.... e ela já não existia mais. Os transeuntes passavam e não a viam ou fingiam não vê-la. Já estava acostumada a não ser notada, mas naquele instante, uma coragem avassaladora tomou conta de si mesma e ela gritou, gritou como quem está perdendo uma parte do seu corpo, como se algo a dividisse ao meio: “Eu existo, estou aqui, me olhem....”. “Eu sou alguém!”

          Que idiotice acreditar que ouviriam uma garota mal vestida, suja e descabelada gritando no meio da rua! Nada aconteceu... Só o silêncio.... Seu companheiro fiel.

           Olhou para os lados e pensou que era cedo demais para desistir. Afinal estava ali e era preciso dar continuidade ao mistério.... Ainda não perdera a fé. A dita fé que remove montanhas!!!! Ora, nem sequer sua fé foi capaz de torná-la alguém... De ser? Continuou a caminhar sem saber para onde. Já não pensava com exatidão... Procurava o que mesmo? Insistia em buscar algo que já havia perdido há muito tempo e que jamais seria restituído. Em seu íntimo algo lhe dizia que em breve encontraria seu caminho.

          O tempo passava e ela permanecia no mesmo lugar, estática, desorientada, estranha, fora de si... Nada havia mudado, absolutamente nada. Estava do mesmo jeito que ali chegara? Não... Mudanças ocorriam dentro dela e isso ninguém poderia arrancar-lhe ou tirar-lhe. Isso lhe pertencia.

           A chuva recomeçara com mais força e cada vez mais os pingos molhavam seu pequeno corpo, machucavam seu rosto... Mas ela não se importava... Ficou ali, paralisada, recebendo as gotas gélidas, que pareciam bênçãos do céu....

         Foi então que algo aconteceu... Avistou ao longe uma imensa catedral, tão exuberante... tão perfeita, como ela jamais seria. Suas portas estavam abertas como se estivesse esperando por uma visita que logo chegaria. Algo a impeliu até lá. Meio amedrontada com a beleza do lugar e sua simplicidade, não tocava em nada, somente seus olhos observavam tudo. Avistou cortinas do tecido mais fino, chegou a sentar-se no banco mais confortável que já tivera a oportunidade de fazê-lo, viu também um piano. Como gostaria de saber tocar!!!! A música sempre conseguira aliviar a angústia de sua alma. Pelo menos por alguns instantes.

         Em vários lugares via esculturas de madeira e de outros materiais que não saberia denominar. Várias imagens lhe chamaram a atenção, até que... Até que sentiu como se naquele momento seu coração parasse. Bem ali, na sua frente havia a imagem de um homem simples, magro e pregado numa cruz. Quem era ele? Imaginou que seria o tal cristo que veio ao mundo para dar esperança às pessoas. Não era isso que a tal religião tanto pregava? Cadê então a sua esperança?

          Aproximou-se devagar, e sem entender os motivos, sentiu-se finalmente compreendida e reconfortada. Ajoelhou-se abruptamente e sem perceber as lágrimas vieram aos borbotões, mais as mais verdadeiras de sua triste vida.

         Todos os seus pedidos foram ali depositados. Uma calma sobreveio sem nenhuma explicação. Ainda permaneceu ali e chorou... Não era o choro de desespero, de dor contida. Era choro de morte. De uma morta-viva! Levantou-se em seguida e foi embora. Não continha mais suas lágrimas.... Mas o rosto já se acostumara a elas...

      A chuva não cessava e seu coração começou a bater acelerado. Uma angústia tomou conta do seu ser e uma idéia súbita e sombria lhe passou pela mente. Será? Avistou ao longe um mirante. Sentia-se compelida a ir até lá, como se algo a chamasse. Foi...

          Ninguém a olhava, sequer percebiam a sua existência... Foi subindo os degraus bem devagar, como se tivesse que cumprir um ritual.... Sua cabeça doía, como se algo a estivesse esmagando. Náuseas tomavam conta dela e as vertigens pareciam aumentar a cada passo que dava. Não poderia voltar mais. Era importante ir até o fim.

          Chegou finalmente no topo, o lugar mais alto que já estivera na vida. De lá pôde ver a cidade inteira. Fixava seu olhar em vários pontos por alguns minutos e divagava... Tudo era intenso dentro dela. Sofria de excesso sempre lhe disseram, mas o excesso era tudo o que tinha de melhor em si mesma.

         A noite chegara e a chuva não cessava. Seus olhos brilhavam ao ver a cidade iluminada. Aquela imensidão de luz a atraía cada vez mais... Queria fazer parte dela! A chuva aumentava, molhava seu rosto, seu corpo rodopiava de felicidade. Ela nem sabia o que era felicidade. Só sentiu que era bom estar no alto e enxergar de lá toda a cidade brilhando, reluzente, única. Enfim sua... Sua cidade! Agora descobrira também o que era alegria. Ria... ria... e seu sorriso pela primeira vez era verdadeiro.

          Depois da euforia inicial, aproximou-se das grades que a protegiam, olhou para baixo, depois para o céu escuro... Foi um olhar lento e demorado..... Seu corpo virou-se, mas já não queria enxergar mais nada... Nem cidade... Nem luzes brilhando.... Seus lábios ainda sorriam como se estivesse agora completa. Tocou levemente nas grades, segurou-as com firmeza e resolução. Eram baixas e nelas se encostou para receber a chuva que não parava nunca... As grades já não a protegiam mais de perigo algum, nem dela mesma... O medo dissipara-se por completo. Aos poucos, tudo fora se tornando insignificante diante de sua mais importante decisão.

         Olhou para o céu uma última vez e já não viu estrelas... Em um instante precipitou-se no ar de braços abertos. Poucos momentos de felicidade tivera, mas enfim descobrira o seu destino...

Fonte: Meu duplo


2 comentários:

Jessica disse...

Sentindo sua falta Paulinha!!

Bjinhos :)

Bell disse...

tudo muito lindo por aqui.

Paulinhaaaa, sdd

bjokas :)